terça-feira, abril 26, 2005

O musicalmente correcto



É: já não bastava a ditadura do politicamente correcto. Agora ainda temos de levar com a ditadura do musicalmente correcto na cachimónia. Um tipo já não pode curtir uns Oasis ou um Robbie Williams à vontade. Antes disso, tem de pedir licença a uma espécie de PIDE musical que dita o que convém ouvir e o que não convém ouvir. O que convém elogiar e o que convém desancar. Em nome dos bons costumes melómanos.
Ainda hoje tenho variadíssimas nódoas negras por ter comentado em público que me tinha comovido com duas ou três composições de um indivíduo com ar de presidiário armado ao artista chamado Gary Jules (sobretudo uma, Umbilical Town). Na altura, encostaram-me à parede e levei pontapés em todas as partes do corpo de uma rapaziada que eu tenho por amiga. Não fiz o que eles queriam – não pedi desculpa pelo “equívoco” – e, por isso, acabei na sala de espera do banco do hospital. A ouvir, como não podia deixar de ser, o enfermeiro Kenny G.
(Convém distinguir esta situação dos guilty pleasures. Porque é fácil assumir os guilty pleasures nos salões e nas casas de chá. Qualquer doutorado em música tem-nos. Fica bem dizer-se, por exemplo, que se tem por hábito bater o pé ao som dos Bee Gees, dos Abba ou do José Cid; isto a que me refiro não é um guilty pleasure; é algo de que se gosta sem qualquer culpa ou angústia). Temo, pois, que vou ser vítima de assassinato pela mesma rapaziada quando escrever que fui bastante à bola com o primeiro álbum de um puto americano chamado Amos Lee.
A minha sorte é que o gaiato não é nada conhecido por estas bandas (ao contrário do Gary) e que assina pela Blue Note – uma editora do mais musicalmente correcto que há. O álbum é uma mistura apaziguadíssima de soul e folk. O Amos tem uma vozinha que tanto pode fazer lembrar um Al Green como um Stevie Wonder – e, às vezes, até o próprio. Não é inovador, não vai marcar a História da música, não vai ser elogiado nas colunas indie, mas eu gosto. (Ó José Anastácio, aponta lá a bazuca para outro lado).
O disco dá-me, acima de tudo, muita calma. Ouço-o e deixo de ter vontade de ir provocar estragos irreparáveis na tertúlia do SIC-10 Horas. E, além do mais, é bom para a asma. O que dá jeito - agora que o Governo decidiu cortar na comparticipação de medicamentos antiasmáticos. É isso: um gajo ouve o disco do Amos Lee e fica sem bronquite. Devia ser receitado nos consultórios.
Aqui e ali, Amos não disfarça: estamos perante a mais desavergonhada música de engate. Ao longo do álbum, vai-se transformando num Barry White sem overdose de afrodisíacos. Ouça-se, por exemplo, Arms of a Woman para perceber isso. Outras musiquetas contra a asma: Keep it loose, keep it tight, Seen it all before e Love in the lies. O último fôlego do guerreiro é All My Friends, um dos mais ternurentos hinos à amizade que tenho ouvido – e que aproveito para dedicar a todos os amigos que estão agora a cortar o meu corpo aos bocadinhos e a preparar o tempero para a churrascada. Ao menos, guardem alguma coisa para mim. NCS
(texto publicado ontem no jornal A Capital)

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

correcto! mas pq uma foto de gaúchos a preparar um churrasco? estranho...

1:44 da tarde  
Blogger EM said...

O facto de ser o músico encarregue das primeiras partes dos concertos de Bob Dylan, parece ser realçar.

Não deixa de ser curioso o facto de sentir-se ameaçado, ou mesmo agredido figurativamente pelos seus amigos, e depois acabar por cair nos mesmos tiques qualificativos do tipo de música em causa.

1:55 da manhã  
Blogger Nuno said...

Caro Duarte,

Escolhi esta foto de churrascada porque gostei da bigodaça dos senhores. Sim, sempre quis ter amigos de bigode. Apenas isso.

Caro EM,

Obrigado pelo comment. Já sabia das comparações com o Bob, mas não sabia das primeiras partes. Desde que os Trovante fizeram as primeiras partes dos Rammstein que não ligo muito a isso.

Outra coisa: fui ao seu blog e fiquei devidamente informado sobre os seus tiques - ou melhor sobre as suas estrelinhas.
Não me ofenda: não fui agredido figurativamente. Tenho os relatórios médicos (de vários especialistas) para o provar.
Ecléticas saudações, Nuno

4:11 da tarde  
Blogger EM said...

Caro Nuno,

Não tem naturalmente que agradecer. Relativamente às primeiras partes, valem naturalmente o que valem, e apenas isso.

Quanto às minhas estrelinhas, apenas uma nota: Será eventualmente um tique selectivo, já que no EM por opção só aparece aquilo que se gosta e de que se vai tendo conhecimento. As estrelinhas representarão somente uma medição do gosto, nunca uma qualificação, mais ou menos, depreciativa.

Gostaria ainda de, depois de tomar conhecimento da existência de tais relatórios, desejar-lhe as melhoras.

Retribuem-se as Eclécticas Saudações.
EM

6:18 da tarde  

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