segunda-feira, junho 13, 2005

Dois bebés melómanos



Sim, continuo numa linha de DJ de autoestrada. Na última edição da croniqueta, falei-vos sobre isso de ouvir um disquito de rap tuga no descapotável de um amigo. Esta semana escrevo sobre isso de escolher música para consumir durante uma viagem familiar entre Lisboa e o Alentejo. (Para a semana provavelmente escreverei sobre isso de ser despedido da coluna musical de Domingo desta prestigiada publicação).
Ora, alinhemos sobre a página o cenário e os protagonistas. Sou eu que conduzo a carripana durante o périplo em direcção a umas mini férias em família na pousada de Marvão. Dentro do veículo, para além da minha melancólica carcaça, estão a minha mulher, a minha irmã, o meu avô e dois ouvintes exigentes: o meu filho (de 9 meses) e a minha sobrinha (de ano e meio).
Esqueçamos, por uns momentos, os primeiros personagens da história. Concentremo-nos nos bebés. Antes de mais, convém dizer que estamos na presença de dois melómanos incuráveis. De malta que deve ter mais informação musical do que o Augusto M. Seabra, o João Lisboa e o Nuno Rogeiro (a julgar pelas notas na Sábado) juntos. Ou seja: não vale a pena pôr a tocar uma daquelas compilações de música melosa para crianças que se vendem nos hipermercados. Levamos logo com uma data de fraldas usadas nas orelhas.
Comecei a viagem com Reveries, de Paulo Conte, sobre o qual ainda irei escrever um dia (quando tiver caparro emocional para isso). O pessoal não se manifestou verbalmente sobre a escolha. O único sinal em que reparei – quando, de forma discreta, olhei pelo espelho – foi no meu filho a meter a mão debaixo do queixo para pensar na vida. Isso preocupou-me bastante. Não quero poetas lá em casa.
Ainda tentei cortar o ambiente lírico-infantil, pondo a tocar os LCD Soundsystem, mas os dois começaram imediatamente a chorar baba e ranho (e outros materiais que só se podem conhecer nos artigos da Pais e Filhos). Acalmei o ambiente com o EP 3..6..9 Seconds of Light, dos Belle & Sebastian. Remédio santo. Os primos levantaram no ar as caixas de dodots e até cantarolaram juntos os refrões.
Logo a seguir, quiseram mostrar ao mundo dos adultos que não vão em modas e modernices. Lançaram-se numa gritaria medonha na altura em fiz uma sequência que envolvia os Bloc Party e os Kaiser Chiefs. “Já não bastava o teu pai ter aquela panca irritante dos Franz...“, comentou a minha sobrinha com o meu filho - enquanto eu, meio atrapalhado, tentava escolher o biberon musical que aquietasse as duas almas.
Não convinha arriscar. Fui logo a um clássico. Ou a um disco de um clássico. A Music of My Mind, de Stevie Wonder (numa reedição já deste século). “O homenzinho do 'Eu Só Te Mandei um SMS para Te Dizer que Te Amo?'”. Sim, os putos primeiro torceram o nariz. Ameaçaram sair do carro em andamento. Mais: ameaçaram fazer queixa às autoridades (no caso, a minha mulher e a minha irmã), mas depois, pouco a pouco, foram soltando sorrisinhos desdentados de satisfação.
Quando chegou a quinta musiqueta do álbum, Happier Than the Morning Sun, já estavam os dois em alegre ressono. Prova de que, dessa vez, o condutor/DJ tinha acertado na escolha. NCS

(texto anteriormente publicado em A Capital)