segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Os malucos do sonho



Se os Mercury Rev tivessem um programa na SIC em horário nobre seria chamado Os Malucos do Sonho. O nome é piroso, eu sei, mas é o que melhor se adequaria a um talk-show conduzido por estes americanos bizarros. É que o som dos Mercury Rev faz lembrar o universo onírico de Tim Burton (outro ‘grande maluco’, que podia ser o convidado especial de todas as emissões), cheio de fantasmas ora ameaçadores ora ternos e vulneráveis.
Utilizemos o método comparativo, tão do agrado da Crítica de Música - e até de mim próprio. Os Mercury Rev são uma espécie de Supertramp depois de terem ingerido uma série de ácidos e de cogumelos alucinogénios. O que não quer dizer que se demitam de procurar a melodia e a arrumação musical. Pelo contrário. Como a malta já está nestas andanças desde o fim dos anos oitenta, apesar das toneladas de dopping, não perde a compostura. O som-tipo dos Mercury (deixem-me tratá-los por tu) é, no momento, a fusão entre a vozinha frágil de Jonathan Donahue, género desenho animado, e uma data de sons mais ou menos etéreos (se estivesse num debate político apresentaria o gráfico com as barras: 41% de voz frágil, 52% de sons mágicos e 7% de vontade de ganhar dinheiro) metodicamente coordenados entre si.
Sabe-se que depois de Deserter’s Songs (1998) e de All is Dream (2001), os Mercury Rev, outrora bastante barulhentos e esquizofrénicos, tornaram-se num grupo canónico, que convém sempre citar nos salões de chá da música alternativa. The Secret Migration, apesar do título, deixou-os no mesmo sítio. Em relação aos dois álbuns anteriores só tem mesmo uma novidade: a capa. A capa podia ser o rótulo de um perfume barato comprado numa loja de chineses do Martim Moniz. Mas não deixa de combinar bem com o ambiente do disco – bastante distante daqueles que se encontram na maior parte dos álbuns sentimentais e urbanóides da maior parte da música dita indie.
Secret for a Song, o tema que abre o álbum, é quase uma versão épica de Tides of the Moon, de All is Dream. Uma canção cheia de força, atravessada pela energia da bateria (como se fosse o som das entranhas da Terra) e pela beleza dos versos do refrão: «I’ll tell you a secret, I’ll sell you a secret for a song». Diamonds e Black Forest (Lorelei) ficam no ouvido pelo seu mistério e estranheza, a fazer lembrar a experiência de Harold Budd com os Zeitgeist, no memorável She is a Phantom. O universo, esse, é feito de aranhas, dragões voadores, cavalos, montanhas, lagos, arvoredo. Cuidadinho, pois.
In The Wilderness, First – Time Mother’s Joy (flying) e Down Poured the Heavens podiam ter constado de Deserter´s Songs. A gente começa a ouvir estas cançonetas e tem vontade de «passear contigo, amar e ser feliz». In the Wilderness transforma-se depois numa canção pop, para cantar no Verão. In a Funny Way repete essa fórmula de fazer bater o pezinho. Arise, marcada pelo baixo, é a mais psicadélica de todas - não me admiraria se tivesse contado com a participação dos Spiritualized, de Jason ‘Spaceman’. E Moving On é um diamante perdido, com um bonito poeminha de esperança para o mundo dos homens. Sim, porque os Mercury Rev nunca deixam de falar de relações humanas. Só que, em vez de o fazerem num T-2 em Algés, fazem-no num universo imaginoso e fantástico. NCS
(texto publicado ontem no jornal A Capital)